quarta-feira, 9 de abril de 2008

Pastiche

"Ouvidos Moucos"*

"Vou já dizendo para arrepiar caminho, que não tenho medo nenhum de morrer. Vamos cá ver: ter até tenho, porque morrer significa um apagar de luz que não estou preparado – nem nunca estarei, aqui vos digo –, mas o que eu tenho mesmo, é medo de fazer sofrer enquanto morro. Quando morremos há muitas pessoas que morrem connosco e é a pensar nelas que não quero. Não quero que pessoas que tanto gosto morram comigo por saberem que morri. Daí que quando me dizem "olha que a continuares assim, vais morrer sozinho!", eu invariavelmente suspiro como se fosse um sonho bom. E porquê? Porque não quero que na altura de morrer, ninguém esteja comigo.



Pelo contrário, faço questão que quando o pressentir tenha fôlego suficiente para dizer a quem está próximo "Olha, parece que estão ali a chamar-vos lá fora, se não se importam deixem-me agora um pouco sozinho que eu quero aqui fazer uma coisa que não podem ver!" e posto isto, aproveitando a ausência que sei ir ser curta, morro ali num instantinho. Assim, de repente. Sem sofrer nada e sem fazer sofrer. Como se saíssemos de manhã para comprar cigarros e não voltássemos. Ficávamos a meio do caminho entregues a um momento que deve ser nosso, apenas e só, nosso. Mas não é. E cada vez mais percebo que todos querem estar presentes na hora da nossa morte quando muitos deles o deveriam ter feito em vida. Dispenso pois os aplausos que saberei não ouvir – aplaudam-me agora – dispenso pois flores – dêem-me agora – poupem-me os elogios "Que era bom rapazinho! Que deixará saudades! – falem-me agora enquanto vos ouço pois quando estiver reduzido a cinzas não ouvirei patavina do que me dizem. Mas não. Pelo contrário, quando estamos a morrer – e eu espero estar muito longe disso – é usual dizerem "Ele está a morrer, não posso o deixar sozinho" -, quando afinal – para mim por exemplo – é tudo o que quero.



Por mais que nos custe, nos funerais as pessoas falam umas para as outras e não para quem morre, tal qual muitas mulheres se vestem umas para as outras e não para os homens. A morrer – e esse dia virá por mais que me custe – gostaria apenas de pedir um último desejo. O de estar vivo, apenas e só, para assistir à minha morte. Que mórbido, dirão! Pois que o seja, ora essa, mas quando vamos morrer somos pequeninos de novo e tal qual o aniversário de uma criança muito pequena tudo nos deverá ser permitido. E assim – pensando bem – é legitimo o que peço. Viver apenas o tempo suficiente para assistir à minha morte. O tempo suficiente para perceber quem me chora com igual intensidade à que eu chorei quando o Veloso falhou o penalty frente ao PSV Eindhoven. Só peço isto – respeitem-me pois- perceber quem ali foi e que eu já não via tanto tempo só para comentar em tom baixo "ainda ontem liguei àquele sacana para irmos para os copos para o Bairro e disse-me que estava cheio de trabalho e agora é isto, olha para ele ali como se não tivesse nada para fazer!" Quando morre alguém, de repente, as pessoas ficam sem nada para fazer. Daí que não vá a funerais ou que os evite a todo o custo porque quero chorar e rir com quem é vivo, fazer-lhe uma última homenagem todos os dias como se fosse o primeiro e não o último. Bater-lhe palmas em vida, dizer "És o maior! Gosto de conversar contigo pá!" na certeza de que a pessoa ouvirá o que lhe digo. De lhe telefonar a dizer "era só para saber se estavas bem, pois não tenho novidade alguma" de lhe escrever ou enviar uma mensagem revelando que a festa está boa "Mas que não é a mesma sem ti". Depois de morrer – e esse dia virá pois então – só ouvirei palavras e sentirei os gestos que me tenham sido dirigidos ainda em vida. A tudo o resto – só por perrice - faço questão de fazer ouvidos moucos."



*Autor: Fernando Alvim


O meu sentimento é idêntico.
Não escreveria melhor. Apenas um apontamento.
Substituía a referência do penalty falhado por Veloso, pela eliminação de Portugal nas meias finais do Euro 2000 diante à França.

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